À ESPERA DE UM LAR

Apesar de representar apenas 16% do número de adotantes, crianças do Nordeste ainda aguardam adoção

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Ser adotada, ter uma família legal e se formar em Medicina. Esse é o desejo de Adriele Santos, que aos 15 anos, vê as chances de ser adotada cada vez mais distante. Acolhida em uma das unidades existentes em Maceió, Alagoas, a adolescente é uma das 843 pessoas aptas para a adoção em toda a região Nordeste, que conta com 5.027 pessoas que desejam adotar. 

Não, você não entendeu errado, de fato, os números parecem não bater. E isso se deve a alguns fatores, como o perfil desejado pelos pretendentes à adoção no momento em que se aderem ao Sistema Nacional de Adoção. Faixa etária, etnia, existência de comorbidades e até o fato de terem irmãos podem ser decisivos na hora de uma criança ganhar um lar ou não. 

De acordo com os dados do Sistema Nacional de Adoção, analisados pela Agência Tatu, no Nordeste a diferença entre o número de postulantes à adoção e crianças aptas varia de 81% a 89%, ou seja, existem uma ou duas crianças disponíveis para adoção a cada dez pessoas que desejam adotar.

No entanto, a maioria desses futuros pais e mães preferem crianças menores de quatro anos, que são a minoria das que podem ser adotadas na região. Em contrapartida, à medida que a idade aumenta, cresce também o número de crianças que a cada ano se veem mais distantes de ter um lar. 

A longa espera, a decepção e o medo fazem com que depois de uma certa idade, algumas dessas crianças e adolescentes não desejem – ou não tenham mais esperança – ser adotados.

Joilma (15), José (20) e Juliana dos Santos Oliveira (21) são irmãos e vivem juntos em uma unidade de acolhimento de Maceió. Joilma, que ainda é menor de idade, relata que não tem mais esperanças em ser adotada e, na verdade, tem medo, fruto de traumas deixados por uma adoção passada. Mesmo assim, a esperança de um futuro melhor é o que move a adolescente.

“Eu espero que eu tenha um futuro brilhante, que eu consiga realizar meu sonho de ser advogada e depois juíza, e ser bem sucedida. Eu sei que estou aqui só de passagem e sei que um dia eu vou sair daqui”, diz a menina que está no 8º ano e, ao contrário dos irmãos, prefere os livros ao celular.

O desejo dos três é juntar dinheiro e morarem juntos ao sair do abrigo.

Para o juiz Ygor Figueiredo, que está à frente da Coordenadoria Estadual da Infância e da Juventude (CEIJ) do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL), os dados vistos no Nordeste são a realidade em todo o país.

“Essa conta não fecha. Nós temos mais pretendentes do que adotantes. O que muda é justamente o perfil de crianças e adolescentes procurados pelos que querem adotar, normalmente eles querem crianças mais jovens. E isso não é culpa de quem quer adotar. As pessoas querem exercer a maternagem e paternagem da forma como julgam melhor, eles querem adotar crianças mais novas e a gente não pode impor que eles adotem crianças mais velhas ou adolescentes, o que a gente pode fazer é conscientizá-los de que também existem outros jovens em instituição de acolhimento e que esses jovens também precisam de família”, pontua o magistrado.

Para o amor não há idade

Mas isso não é regra. Mães e pais têm cada vez mais aberto seus corações para terem suas famílias completas com crianças que passaram da faixa etária mais desejada pela maioria das pessoas. Conhecido pelo termo de adoção tardia, é o ato de adotar crianças acima de quatro anos.

Este é o caso do casal Andrea Luiza da Rocha (54) e José Gerardo (46), que há três anos adotaram o Pedro Rocha, hoje com 12 anos. Eles contam que a princípio José queria adotar uma criança de até 5 anos, mas Andrea preferia de uma idade maior.

“Quando a gente entrou no Sistema Nacional de Adoção eu pensava que se a gente pegasse um bebê, quando tivéssemos com quase 60 anos ele ia ter na faixa dos 10 anos e a gente não ia ter mais pique para acompanhar a energia da criança. Mas ele [José] queria uma mais nova porque, como não teve filho biológico, ele queria passar por todas as fases da criança“, explica Andrea.

Dessa forma, Andrea decidiu dar uma olhada nas crianças disponíveis para adoção com idade maior do que o pretendido por José Gerardo. “Eu entrei no site de busca ativa pra ver as crianças, que normalmente são de idade mais velhas, e foi aí que eu vi a foto do Pedro e na mesma hora eu soube que era meu filho”, conta a militar da Aeronáutica. 

Imagem de um homem, uma mulher e uma criança em um barco apontando para o mar.
José Gerardo, Andrea Luiza e o filho Pedro. Foto: Andrea Luiza/Arquivo Pessoal

Andrea conseguiu então convencer o esposo da adoção de Pedro e o casal iniciou todo o processo que foi um tanto burocrático, pois eles residem no Rio de Janeiro, Pedro estava em Maceió, mas o processo de adoção dele ainda estava no judiciário da Bahia.

“A família biológica dele era da Bahia e o Pedro e as três irmãs foram adotadas por um casal de Maceió. Mas já em Maceió esse casal teve problemas e tiveram que devolver todas as crianças adotadas e nessa devolução as meninas foram para um abrigo feminino e o Pedro foi para um masculino. Com isso, eles perderam o vínculo e foi aí que a gente conseguiu adotar somente o Pedro”, explica José Gerardo.

A espera valeu a pena para os pais, que hoje fazem questão de reforçar que tiveram muita sorte ao ter Pedro como filho, uma vez que possuem uma convivência muito sadia com o jovem que é muito atencioso, gentil, preocupado, divertido e carinhoso, conforme contam. 

“Para mim, a melhor coisa que a gente fez foi ter o Pedro como nosso filho. (…) Na adoção tardia, a gente não tá pegando uma criança para fazer caridade, não. Você vai adotar porque você quer ter um filho. É uma família normal. E na família, é um ajudando o outro, sempre”,  Andrea Luiza, militar da Aeronáutica. 

Dyego Duarte Rocha tem 32 anos, é publicitário e pai solo de duas crianças que foram adotadas com 9 e 11 anos, Yuri e Emmanuel, respectivamente. Ele conta que a decisão surgiu em meio à pandemia da COVID-19, quando diversas crianças estavam ficando órfãs devido à disseminação do vírus pelo Brasil, mas que já era um projeto que tinha para sua vida. “Com inspiração do meu bisavô que também adotou. Quando fosse possível, adotar uma criança e dar a oportunidade de mudar sua realidade para melhor. E assim aconteceu”.

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Dyego Duarte Rocha com os filhos Yuri e Emmanuel. Foto: Dyego Rocha/Arquivo Pessoal

No entanto, inicialmente, a ideia era adotar uma criança mais nova, de até 5 anos de idade. “Porém, quando conheci a história de vida dos meninos e seus desafios, mudei meu perfil no cadastro nacional de adoção para que fosse vinculado a eles e pudesse participar no estágio de convivência”, relata o publicitário.

Segundo o juiz Ygor Figueirêdo, para que casos como o de Andréia, José Geraldo e Dyego sejam mais comuns é preciso acabar com o preconceito. “Em relação à adoção tardia, o que a gente tem que fazer é desmistificar. Há uma crença popular de que a criança só forma o vínculo quando é adotada na tenra idade, o que não é verdade. Nós temos muitos casos de sucesso de adoção tardia, o que a gente precisa é que haja pessoas com compatibilidade de alma, com afinidade, e isso você só vai saber se você conhecer. Então, a gente tem que estar disposto a quebrar esse paradigma e a conhecer os nossos jovens que estão em situação de acolhimento”.

“Nós temos através da adoção uma possibilidade de formação de família, uma possibilidade de a gente dar amor, de a gente receber amor […] Você está fazendo aquilo para ser feliz”, juiz Ygor Figueirêdo.

Desafios diários 

Seja de uma criança que tenha vínculo sanguíneo, seja uma que tenha o vínculo afetivo por meio da adoção, ser responsável pela criação de um ser humano é um desafio. No caso do publicitário Dyego, a maior dificuldade foi a adaptação escolar e a iniciativa de estipular regras e limites que eles não conheciam. 

“Na escola, os meninos estavam com um nível de conteúdo bem abaixo do ano letivo que estavam matriculados. Foi preciso correr atrás de psicopedagogos e reforço escolar para que pudessem dar seguimento aos estudos, no seu ritmo, e conseguir passar de ano letivo. Hoje, eles já estudam por conta própria, tem um reforço escolar para ajudar no período de provas e trabalhos mais complexos, e já entendem bem as regras em casa, na escola e em outros ambientes sociais”, conta.

A adaptação na escola também foi um dos maiores desafios para Pedro, conforme contam os pais. Segundo José Gerardo, no início o filho não sabia ainda escrever direito, mas com o apoio em casa, de professores e psicólogos, logo ele conseguiu pegar o ritmo.

“Ele chegou aqui [no Rio de Janeiro] com uma dificuldade imensa nos estudos e teve a pandemia que dificultou muito também. Então no começo ele só sabia escrever letra de forma, por exemplo, e contratamos uma professora de reforço. Aos poucos ele foi aprendendo rapidinho e começou até a se destacar em sala de aula”, relata orgulhoso.

Saber lidar com o passado da criança, comumente envolvido por maus tratos, é um ponto relatado pelos pais e mãe entrevistados. No caso de Pedro, Andrea relata que o filho normalmente diz que não se lembra de detalhes do passado, quando são perguntados.

“Ele não fala muito do passado. Até o nome das irmãs ele fala que não lembra, Não sei se ele não lembra porque não quer recordar ou se realmente não lembra por que bloqueou da memória, sabe? (…) Ele tem umas cicatrizes que eu acho que foi de maus tratos e algumas na perna parecem queimaduras de cigarro, ou alguma coisa assim. Mas nas vezes que eu pergunto para ele, ele diz ‘eu não sei, não, onde eu machuquei isso”, explica Andrea.

Dyego relata um caso que ocorreu no dia das mães de 2022, em que o filho mais velho, Emmanuel, estava chorando muito em casa. “Ele não tava mal por não ter mãe, tava mal por lembrar que ela abriu mão dele e isso era motivo de brincadeira na escola”.

Mesmo com todos os desafios, alguns até comuns na convivência de qualquer criança, seja ela adotada ou não, o que prevalece é o amor.

“Pode ser mais difícil adotar uma criança ou um adolescente, acho que por medo de não dar certo ou por querer ter vivido uma infância com aquela criança, mas na verdade quando você tá com aquela criança ou aquele adolescente, tudo muda. Você não sente falta de ter vivido a infância ou daquela história que poderia ter acontecido. O que importa é o presente” afirma José Gerardo.

Todos têm direito a um lar

A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) dizem que a convivência familiar e comunitária é um direito fundamental que deve ser garantido a crianças e adolescentes, tendo direito a serem criados e educados por sua família e, na falta desta, por uma família substituta.

Nas unidades de acolhimento dos nove estados do Nordeste, a maioria das crianças aptas à adoção são meninos (53,8%), enquanto 46,2% são meninas. Com relação à raça, os pardos aparecem com mais frequência (70,4%), em seguida as crianças pretas (15,4%) e depois as brancas (14%), apenas uma criança de toda a região é declarada como amarela.

Por faixa etária, a maior quantidade é de adolescentes de 14 a 16 anos (165), mas é possível perceber aumento gradual do número de crianças para adoção após os 8 anos. A maioria das crianças (56,4%) também possui um ou mais irmãos, outro fator que pode reduzir as chances de adoção. E 306 crianças (36,3%) têm alguma deficiência, problema de saúde ou doença infectocontagiosa.

“Algumas pessoas se enganam quando buscam o filho perfeito em um processo de adoção[…] Acham que a criança vai dar muito trabalho e, por esse motivo, jogam um banho de água fria no sonho de diversos meninos e meninas que estão em abrigos à espera de uma família. Adotar é um ato de amor, tanto para quem está no abrigo à espera de uma família, quanto para quem está se habilitando no processo de adotante”, Dyego Rocha, publicitário. 

Diversas iniciativas estão sendo desenvolvidas nos tribunais de justiça da região, assim como associações da sociedade civil, como é o caso do Grupo de Apoio à Adoção de Alagoas (GAAAL), que foi criado há oito anos pelo juiz Ygor Figueirêdo. Atualmente, existem em média 200 grupos oficiais no Brasil, pois tem que haver autorização judicial para funcionar, como explica Fátima Malta, psicóloga e coordenadora do Grupo.

“Trata-se de grupos voluntários sem fins lucrativos que têm a função de preparar postulantes adotantes e acompanhar famílias adotivas, prevenindo fracassos durante o estágio de convivência e no pós-adoção, além de ajudar na reintegração familiar, conscientizar a sociedade sobre a legitimidade da família adotiva, mediar as buscas ativas, principalmente nas adoções necessárias, que são de grupo de irmãos, tardias, especiais e interraciais”. 

Em Maceió, Alagoas, o grupo se reúne uma vez por mês no Juizado da Infância, além de funcionarem diuturnamente, alimentando o grupo virtual através do WhatsApp, em que são debatidos assuntos relacionados à adoção.

Além do Tribunal de Justiça de Alagoas, que conta com o projeto Adoções Possíveis, incentivando a adoção tardia, outros tribunais do Nordeste possuem campanhas específicas para esse tema, são eles: Bahia, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte. O Tribunal de Sergipe conta com iniciativas de incentivo à adoção em geral, mas não com foco em adoção tardia.

Os Tribunais do Ceará, Maranhão e Piauí não responderam aos questionamentos da Agência Tatu ou não foi possível localizar em seus sites e nas pesquisas feitas pela internet, campanhas específicas para a adoção tardia.

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