Entre 2014 e 2024, o Brasil contabilizou 71.297 casos de violência escolar, de acordo com análise da Agência Tatu baseada em dados do DataSUS sobre violência interpessoal e autoprovocada. As vítimas em sua maioria são meninas (60% dos registros), chegando a 68% no Norte e 61% no Nordeste e Sudeste do país.
Segundo os dados, em relação à raça, os estudantes autodeclarados pretos ou pardos representam 46% das vítimas de violência escolar, enquanto pré-adolescentes entre 10 e 14 anos concentram 37% dos casos notificados no período.
Os números abrangem desde a educação infantil até o ensino superior de instituições públicas e privadas, conforme explicou o Ministério da Saúde.
Perfil das vítimas
Uma análise mais detalhada do perfil das vítimas mostra que, no Brasil, mulheres e meninas predominam como as mais afetadas pela violência escolar (interpessoal e autoprovocada), representando, em média, 60% dos casos registrados entre 2014 e 2024. O cenário se mantém semelhante nas regiões, embora com leve variação: no Norte, maior percentual, elas correspondem a 68% das ocorrências, enquanto no Sul registra a menor taxa (57%) no período analisado.
A doutora em serviço social pela Universidade Federal de Pernambuco, Silmara Mendes, explica que a predominância de pessoas do gênero feminino entre as vítimas está ligada a uma combinação de fatores sociais e culturais. Segundo a pesquisadora, meninas são, desde cedo, socializadas para a passividade e a obediência, o que pode dificultar a reação diante de situações de agressão e aumentar sua vulnerabilidade.
Além disso, a especialista destaca que a forte pressão por padrões estéticos e de comportamento contribuem para reforçar o controle sobre seus corpos, provocando angústias que, em muitos casos, se manifestam em formas de violência autoprovocada, como a automutilação. “A violência em idade escolar é uma expressão particular da violência de gênero, muitas vezes invisibilizada ou naturalizada pela escola e por outras instituições”, afirma.
Na última década, 46% das vítimas desse tipo de violência no Brasil se autodeclararam negras (agrupando pretos e pardos, conforme classificação do IBGE).
Segundo Silmara, o alto percentual nas regiões Norte e Nordeste reflete, antes de mais nada, as profundas desigualdades sociais que assolam o país. A população negra vive majoritariamente em territórios com pouca presença do Estado e em condições deficitárias de infraestrutura, saúde e educação. Assim, a violência tende a afetar de maneira mais intensa essa parcela da população, que, em vez de políticas de proteção e promoção de direitos, costuma ser alvo de estratégias de segurança pública baseadas no confronto e na repressão.
Em relação à faixa etária, embora o DataSUS registre ocorrências envolvendo vítimas de menos de 1 ano a idosos acima de 60, os casos de violência interpessoal e autoprovocada em ambiente escolar durante os anos de 2014 e 2024 em todo o território brasileiro se concentram nas faixas correspondentes à educação básica – 5 a 9 anos (Ensino Fundamental I), 10 a 14 anos (Ensino Fundamental II) e 15 a 19 anos (Ensino Médio).
Os registros mostram que, do total registrado no Brasil (71.297), os adolescentes de 10 a 14 anos representam o grupo mais vulnerável: 37,06% dos casos nacionais (26.421). Jovens de 15 a 19 anos aparecem em segundo lugar, com 21,93% (15.637 registros), enquanto crianças de 5 a 9 anos respondem a 14,78% das vítimas (10.537).
Uma das explicações é que os números mais elevados em determinadas faixas etárias acontecem também devido ao fato de que esses grupos estão predominantemente inseridos em instituições de ensino. No entanto, de acordo com a doutora em serviço social, o predomínio dos adolescentes de 10 a 14 anos nos registros de violência está diretamente ligado a fatores que os tornam especialmente vulneráveis.
“As intensas transformações físicas, hormonais e emocionais vivenciadas nessa fase geram instabilidade e, consequentemente, aumentam a suscetibilidade a conflitos. É uma fase marcada pela busca por identidade, podendo resultar em comportamentos de confronto e não aceitação da autoridade”, menciona.
Afastados do convívio familiar e cada vez mais imersos em grupos de amigos e nas redes sociais, os adolescentes também estão mais vulneráveis ao contato com conteúdos violentos e discursos de ódio. Para a profissional, o cyberbullying e outras formas de agressão virtual surgem como novos fatores de risco, não só por amplificar os gatilhos emocionais dessa faixa etária, mas também alimentam uma sensação de poder e controle sobre o outro. Não é por acaso que os jovens lideram as estatísticas de autores de violência escolar, respondendo por cerca de 30 mil notificações, contra pouco mais de 15 mil de adultos e quase 6 mil de crianças.
Discurso de ódio X Pandemia
“Quando o aluno se sente visto e acolhido, a violência perde força.”
A afirmação é do psiquiatra Danilo Bastos, especialista em terapia infantil e adolescente. Para ele, o combate à violência escolar passa pelo resgate da função afetiva da escola como um lugar que deve promover vínculos, pertencimento e, sobretudo, escuta ativa.
Para o especialista, muitos jovens crescem em ambientes marcados pela ausência de diálogo, onde prevalece a ideia de que “quem grita mais alto vence”. Devido a esse modelo de pensamento, a agressão se transforma em um recurso aprendido — e, por vezes, a única forma de expressar frustração, angústia ou medo.
“Um aumento nas notificações pode significar que estamos olhando mais para o problema — e isso é positivo. Quando a escola acolhe, os alunos passam a confiar e a buscar ajuda”, pondera Bastos. Contudo, ele alerta que os números também demonstram uma crise agravada pela pandemia.
Com o retorno às aulas presenciais, houve um aumento preocupante desses registros, que superaram até mesmo os níveis pré-pandêmicos. Reflexo das consequências do longo período de afastamento, a quebra brusca das rotinas escolares, o enfraquecimento dos laços sociais e a falta de convívio diário que acabaram intensificando problemas emocionais entre os estudantes, como ansiedade e depressão.
“A escola se tornou palco não só do reencontro, mas também do transbordamento dessa dor acumulada”, explica.
O discurso de ódio nas redes sociais, que durante o confinamento se tornaram o principal meio de interação, também agravou a situação. Nesse ambiente, mesmo aqueles que antes não mostravam indícios de comportamento discriminatório podem passar a apresentar.
Segundo o psiquiatra, a escola do século XXI passa a ter o desafio de formar cidadãos preparados não apenas academicamente, mas também mental e digitalmente. “A educação midiática e emocional precisam ser incorporadas ao currículo. É de fundamental importância ensinar a reconhecer discursos de ódio, a diferenciar opinião de desinformação e a regular emoções diante de frustrações. Mais do que prevenir violência, é sobre cultivar empatia”, afirma.
“A escola que prepara bem para as provas, mas ignora o sofrimento de seus estudantes, ainda está falhando. O jovem que tira nota dez, mas chega com medo ou vai embora chorando, está aprendendo apenas a sobreviver”, completa.