A questão da violência contra a mulher é um tema que vem ganhando muito espaço recentemente. Os debates são frequentes, mas pouco se fala da falta de estrutura que as vítimas encontram ao tentar denunciar seus agressores e do despreparo dos profissionais que lidam com essas situações. A realidade é desencorajante e faz com que as vítimas se sintam, muitas vezes, ainda mais recuadas e desassistidas. É o que conta Renata*, vítima de perseguição, tentativas de agressão e ameaças de morte por parte de um ex-namorado.
“Eu estava num relacionamento abusivo. Foram apenas dois meses, mas o suficiente para quase destruir a minha vida. Eu fui obrigada a procurar as autoridades policiais para garantir a minha vida porque, se eu não procurasse, essa pessoa não ia ter limites”, desabafa a vítima, que ganhou um nome fictício nesta reportagem para não ser identificada.
Ela conta que tudo começou há um ano, mas que ainda é ameaçada pelo agressor. “A última [ameaça] que recebi foi dia 25 de dezembro. A maioria das agressões começaram depois do término, tanto porque ele não aceitava o fim, quanto por causa dos boletins de ocorrência que eu fiz contra ele. E isso atrapalha muito a minha vida. Toda essa situação acarretou em problemas psicológicos. Hoje estou com depressão e não consigo mais render no trabalho como antes”.
De acordo com Renata já são dez boletins de ocorrência, dois termos de declaração no Ministério Público e três medidas protetivas que não conseguiram deter as ameaças e tentativas de agressões do ex-namorado. Além das testemunhas, outros materiais comprovam o sofrimento da vítima.
“No meu caso não são provas testemunhais apenas, eu tenho provas materiais. Vídeos, fotos, áudios de ameaças. São provas incontestáveis, mas ainda não foram suficientes. Se houvesse uma punição rápida, já teria dado um freio no que ele está fazendo, mas como não há, ele está desdenhando da situação, como muitos fazem. E se eu vacilasse, já teria acontecido alguma coisa comigo”, revela.
O Atlas da Violência de 2017 traz dados nada animadores sobre vítimas do sexo feminino em Alagoas. De 2005 a 2015, a taxa de homicídio de mulheres no estado subiu 17,2%. E os assassinatos a mulheres negras são cada vez mais constantes, com crescimento, no mesmo período de tempo, de quase 60%, enquanto os homicídios de mulheres não negras caíram 85,5%. O Atlas não especifica as motivações dos crimes.
Promessas não cumpridas
Das três delegacias especializadas existentes em Alagoas, duas ficam em Maceió (uma no Centro atendendo a parte baixa da capital até a Avenida Rotary; a outra no Conjunto Cambuci abrangendo a parte alta) e uma em Arapiraca. De acordo com a Polícia Civil, há também quatro Núcleos de Atendimento à Mulher que funcionam nas delegacias de Delmiro Gouveia, São Miguel dos Campos, Rio Largo e Maragogi. As demais regiões do estado ficam desassistidas.
O Governador Renan Filho prometeu, ainda como candidato, em 2014, construir, além das que existem atualmente, mais três delegacias especializadas no atendimento à mulher: uma no Sertão, outra no Agreste e uma no Norte do estado (como é possível ver na publicação abaixo, divulgada em uma rede social do então candidato ao governo).
Ainda nas redes sociais, Renan Filho se comprometeu a criar casas de passagem, que seriam instaladas em municípios com mais de 40 mil habitantes, e atenderiam mulheres vítimas de violência doméstica. Mas, três anos se passaram desde que Renan assumiu o mandato de governador, e nenhuma dessas promessas foram cumpridas ainda.
O projeto Monitora Alagoas revela ainda que, dentre as promessas relacionadas à Segurança Pública protocoladas em cartório pelo atual governador, há uma que, apesar de ser abrangente, pode-se enquadrar as mulheres vítimas de violência: “Desenvolver programas específicos e inter setoriais de proteção aos segmentos mais vulneráveis da população” (clique aqui para conferir). No entanto, nunca foi repassado nenhum recurso para a aplicação desta meta, como consta no Sistema de Administração Financeira do Estado (SIAFEM).
A reportagem da Agência Tatu entrou em contato com a assessoria de comunicação da Secretaria de Estado de Segurança Pública (SSP-AL), no dia 17 de janeiro, para obter esclarecimentos sobre estas promessas, mas foi orientada a falar com a assessoria de comunicação da Polícia Civil. Segundo a PC, as mulheres vítimas de violência são encaminhadas a centros atendimento que fazem parte de uma rede de acolhimento, da qual o órgão também é integrante, ressaltando que seus profissionais são capacitados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp). Outras informações solicitadas à assessoria da PC não obtiveram retorno.
Já a Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos (Semudh), por meio da Superintendência da Mulher, destacou as parcerias feitas com outros órgãos, com o objetivo de combater a violência contra a mulher. Ainda segundo a Semudh, em União dos Palmares foi possível implantar um Centro de Referência de Atendimento à Mulher, que conta com uma equipe multidisciplinar composta por psicólogo, assistente social e advogado.
Outros projetos destacados pela secretaria no combate à violência doméstica e independência financeira da mulher foram: Mulheres Empreendedoras; Mulheres Mil, que faz parte do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec); Maria da Penha vai à escola; Ronda no Bairro; Parceira com a Secretaria de Trabalho (SETE); além de projetos voltados para a ressocialização do agressor.
Horário de funcionamento dificulta atendimentos
Mesmo em delegacias voltadas para o atendimento de mulheres em situação de violência doméstica, o atendimento se restringe ao horário comercial, enquanto muitas agressões acontecem durante a noite ou em finais de semana. Além disso, as vítimas afirmam que o atendimento é precário, sem profissionais capacitados para lidar com esse tipo de situação.
“Os profissionais são mal treinados. Tem policiais mulheres, mas até elas nos desencorajam. Certa vez, uma delas disse para mim: ‘não acredito que você ainda está brigando com esse rapaz’”, contou Renata. “Não sou eu que estou brigando, eu estou sendo ameaçada de morte, xingada, agredida, e estou apenas procurando os meus direitos. Há um prejulgamento ali. Essas pessoas lhe tiram a coragem, para você ficar com vergonha e não ir mais lá”, criticou.
Esse tipo de repressão não acontece apenas em delegacias. Outros profissionais, que também deveriam prestar um atendimento capaz de mostrar à mulher que ela pode denunciar e tem a quem recorrer, acabam desencorajando as vítimas. “Eu conversei com uma promotora certa vez e ela me disse que eu deveria escolher melhor com quem eu me relaciono. Isso foi uma facada no meu peito, porque ninguém vem com tarja na testa dizendo que vai fazer mal ou bem. Só se sabe com a convivência, e quando eu convivi e percebi como ele era, eu saí logo”, relatou.
Juizado da Mulher
Alagoas conta com dois Juizados de Violência Doméstica contra a Mulher, um em Arapiraca e outro em Maceió. Na unidade da capital chegam mais de cem processos por mês. De acordo com o juiz auxiliar, José Miranda Santos Júnior, a maioria se refere aos crimes de ameaça e lesão corporal, além dos muitos pedidos de medidas protetivas feitos pelas vítimas de violência.
O magistrado, que conviveu com a violência doméstica dentro de casa, contou que em vez de reproduzir o que seu pai fazia com sua mãe, preferiu lutar contra essa realidade atuando no Juizado especializado.
Até 2016, a unidade era vista como uma das piores do país, mas os números de 2017 revelam o crescimento de pouco mais de 365% nas sentenças proferidas. Até outubro do ano passado, o Juizado da Mulher de Maceió sentenciou 2.622 processos, enquanto, em todo o ano de 2016, o número foi de 717. Na unidade tramitavam nesse período 5.240 processos.
“Os números de 2017 foram muito bons e serão melhores em 2018, com certeza. Nós estamos atendendo muito mais as demandas, além disso tem a previsão de inauguração da Patrulha Maria da Penha, da Sala Lilás no novo IML, da Justiça Restaurativa, tudo será implantado este ano”, contou o magistrado.
José Miranda destacou ainda parcerias do Judiciário com o Governo do Estado para a diminuição desses casos. Um exemplo é a Sala Lilás, que será implantada no novo Instituto Médico Legal (IML), e tem o objetivo de oferecer um atendimento especializado à mulheres vítimas de violência, além de dar celeridade no andamento do processo. Já a Patrulha Maria da Penha é um acompanhamento feito por uma equipe treinada da Polícia Militar para mulheres com medidas protetivas com mais riscos de reincidência por parte dos agressores.
Atendimento especializado
A equipe multidisciplinar é formado por psicólogas e assistentes sociais que, além de acompanhar as audiências, auxiliam o juiz na análise dos casos que precisam de acompanhamento ou encaminhamento para alguns dos projetos do Juizado. A finalidade desse atendimento especializado é fazer com que a mulher se sinta mais acolhida.
“Essas mulheres são traumatizadas, sofridas, e muitas vezes dependentes psicologicamente e economicamente. Então, elas têm um apoio, porque precisam de um atendimento especializado. Isso é muito importante. Pensa bem, você sofreu um ato de violência, homem ou mulher, e você não ter a quem recorrer. Aqui elas têm”, destacou o juiz.
Descumprimento da medida protetiva
No caso de Renata, as medidas protetivas não foram eficazes em manter o agressor, que mora perto de sua residência, distante. “O suporte que eu encontrei foi apenas no papel porque, na prática, medida protetiva não me blinda. A medida impede ele de chegar perto de mim, de entrar em contato comigo, além de testemunhas e familiares. Mas não adianta. Ele recebeu a medida protetiva no plantão judiciário e três ou quatro dias depois ele interfonou para minha casa dizendo que iria me matar”, relatou.
Sobre o descumprimento das medidas protetivas, o magistrado alerta que é necessário que a vítima denuncie para que o agressor seja punido. “Dependendo do nível de descumprimento da medida protetiva, o agressor pode até ser preso preventivamente. Mas a mulher precisa informar. Se for dentro do prazo em que foi concedida a medida, é só ela dizer que ela não foi cumprida. Se for fora desse prazo, ela tem que comunicar para que seja aplicada nova medida”, explicou José Miranda.
Desejo de justiça
Mesmo com as reincidências e a sensação de desassistência por falta do Estado, Renata conta que acredita na punição do agressor.
“Hoje o que eu luto é por justiça. Para garantir a minha vida, mesmo sabendo que ele não cumpre as determinações judiciais. E eu fico temerosa de acontecer uma prisão porque me pergunto por quanto tempo ele vai ficar preso? Quando ele sair, como vai ser? Eu fico sem saber a consequência disso tudo. Tem que haver punição e mesmo esperando há um ano, eu acredito que vai haver”.
* Nome fictício para preservar a imagem da vítima
Esta reportagem é realizada em parceira com o Monitora Alagoas