Educação que liberta

O Ensino Superior como ferramenta de ressocialização

educação que liberta. preso abrindo grades da sala de aula na penitenciária. Imagem: orlando costa
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“A sala de aula é um espaço de descoberta e a educação é a chave para um mundo melhor”. A frase fixada com letras amarelas, pássaros e estrelas em volta, no mural em frente às salas de aula, nem parece contrastar com a realidade, não fosse ela estar justamente no pavilhão de celas destinado aos reeducandos que cumprem pena na Penitenciária Masculina Baldomero Cavalcanti, em Maceió, capital de Alagoas. 

É dentro desses locais fechados por grades de ferro, que estão dispostas carteiras, mesas, birôs, tudo organizado para receber aqueles que, privados do convívio com a sociedade, tentam por meio da educação escrever novos capítulos para suas histórias, tendo dentro do sistema prisional a oportunidade de fazer o que não fizeram enquanto viviam em liberdade: estudar.

De acordo com informações do SISDEPEN – ferramenta de coleta de dados do sistema penitenciário brasileiro – da Secretaria Nacional de Políticas Penais, atualmente, a população carcerária do Nordeste é de 214.823 presos, entre os que aguardam julgamento e os que já foram condenados. Destes, apenas 889 estão na universidade, o que representa 0,41% do total de pessoas presas que estudam algum curso do Ensino Superior. 

A educação é uma importante ferramenta de transformação social e aliada a políticas estratégicas se torna também um poderoso instrumento de ressocialização. Os efeitos desse acesso à educação básica e superior, podem ser percebidos em histórias como dos reeducandos J.S e J.F.S.

Garantida pela Constituição Federal de 1988, o artigo 205 diz que a educação é “direito de todos e dever do Estado e da família e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Diante desta necessidade da garantia de direito ao acesso à educação, especificamente ao ensino superior para pessoas privadas de liberdade, a Agência Tatu analisou os dados relacionados ao tema e visitou um presídio para conhecer a história de reeducandos e o funcionamento do ensino no cárcere.

Ensino Superior como ferramenta de ressocialização.
Salas de aula dentro da Penitenciária Masculina Baldomero Cavalcanti, em Maceió. Foto: Orlando Costa/Agência Tatu

Um olhar para o futuro 

Há quase 16 anos, o endereço de J.S, 39 anos, passou a ser o sistema prisional de Alagoas, depois de ter cometido um crime. Quando entrou no presídio, aos 23 anos de idade, ele havia estudado apenas até a sétima série – o equivalente hoje ao 6º ano do Ensino Fundamental – Anos Finais. 

Inspirado e incentivado por um policial penal, o homem resolveu retomar os estudos. Além da própria vontade, ele diz que sempre contou com o apoio fundamental da esposa. Concluiu o Ensino Fundamental e Médio. Não parou. Logo depois decidiu que entraria para a universidade e cursaria logística. 

Assim, o dia 4 de outubro de 2021 ficou marcado na memória dele como um dos mais importantes de sua vida, pois a penitenciária onde estava preso foi palco da sua colação de grau. Reunindo familiares, autoridades e com toda a grandiosidade que a ocasião pedia, ele recebeu o diploma que lhe dava a chancela de concluinte de um curso de nível superior. 

Engana-se quem pensa que o reeducando parou por aí, depois disso já concluiu duas pós-graduações e atualmente estuda MBA em Gestão do Desenvolvimento Humano nas Organizações. “Hoje eu sou um homem melhor”, garante J.S. 

Confira no vídeo abaixo um pouco mais sobre a história dele.

Reeducando fala sobre desafios para conquistar nível superior dentro do cárcere e acredita na educação que liberta. Imagens: Orlando Costa/Agência Tatu

Além de se autoavaliar como uma pessoa melhor, J.S também se diz muito grato pela oportunidade que teve de ser apadrinhado por uma empresária do interior de São Paulo, que decidiu financiar os estudos dele, no curso de logística na Universidade Norte do Paraná (UNOPAR), na modalidade à distância. “Desde quando eu iniciei a graduação e até hoje é ela quem paga todos os custos da minha formação”, explica. 

Após concluir o ensino superior e se especializar por meio de cursos de pós-graduação, J.S planeja um futuro promissor. Ele revela que, se tudo der certo, deverá deixar a prisão ainda este ano e deseja juntamente com a companheira abrir um negócio. “Eu quero trabalhar para mim mesmo. Tenho muita vontade de administrar um pet house”, conta.

Mesmo sabendo que a parte da sua vida onde passou mais de 16 anos encarcerado e longe do contato diário com a família não poderá ser apagada da sua história, a intenção, a partir da saída do sistema prisional, é iniciar uma nova trajetória deixando um legado de superação, principalmente, para os filhos e as netas, de quem ele fala com muito orgulho.  

Diferentemente de J.S, que por estar no regime fechado teve que frequentar as aulas através das plataformas digitais, J.F.S, 31 anos, atualmente está no regime semiaberto e estuda Direito, de maneira presencial, em uma faculdade particular de Maceió. O desejo por ingressar em um curso de nível superior surgiu quando ainda estava no cárcere. 

Ele conta que a decisão pelo curso de Direito foi resultado da maneira como entrou no sistema, já que afirma que foi preso injustamente. “Nasceu em mim o desejo de lutar pelas pessoas inocentes que se encontram dentro do presídio. Não são poucos os casos de presos que estão lá dentro sem ser os culpados pelos crimes que lhe são imputados”, comenta o universitário. 

J.F.S revela ainda que tem vontade de se especializar na área criminal e posteriormente disputar concurso para a magistratura. “Tem sido uma boa experiência, pois a cada dia se confirma em mim que o meu lugar é no Direito”, observa o graduando. Ele diz também que só foi possível realizar o sonho graças à ajuda e ao apoio que recebeu da família.

Decidido a mudar de vida através da educação. J.F.S reconhece os obstáculos e o preconceito sofridos por uma pessoa que teve problemas com a justiça. “Vivemos uma realidade difícil. Eu tenho certeza do caminho que quero percorrer e onde vou chegar, mas imagino também tudo o que ainda posso passar”, fala ao relembrar que ficou mais de cinco anos no regime fechado.

Ele garante que os planos para o futuro são muitos e que todos eles só serão possíveis graças à decisão de estudar. “A educação transforma a sociedade. Somente ela é capaz de mudar a realidade das pessoas e comigo não será diferente. A educação é a maior força de um país e eu acredito nessa revolução através dos estudos”, finaliza J.F.S.  

Quadro com fundo azul e os dizeres em amarelo "A sala de aula é um espaço de descoberta e a educação é a chave para um mundo melhor”.
Mural que fica em frente às salas de aula na Penitenciária Masculina Baldomero Cavalcanti. Foto: Orlando Costa/Agência Tatu

Universidade particular é solução

Embora o acesso à educação seja garantido por lei, as pessoas que estão privadas de liberdade em regime fechado possuem uma dificuldade determinante em relação à educação superior pública, o que é suprido pelas parcerias entre as secretarias de segurança pública dos estados e as universidades particulares.

Áudio de Elaine Pimentel, profa. do curso de Direito na Ufal, sobre a educação dentro do cárcere.

Em regra, para as pessoas que estão presas, a modalidade mais comum de estudo em curso de nível superior é por Educação à Distância (EaD), mas nem toda instituição de ensino possui uma plataforma que funciona de maneira offline, ou de modo que os custodiados não possam ter acesso livre à internet. Em alguns casos, eles conseguem autorização judicial para estudar de forma presencial, mas é uma exceção.

No Brasil, ainda existe uma grande dificuldade para que as universidades públicas realizem a oferta de cursos EaD para pessoas privadas de liberdade, isso porque a plataforma deve seguir os parâmetros de segurança definidos pelo sistema prisional, para garantir que os presos não consigam acessar à internet. Em Alagoas, por exemplo, somente universidades particulares conseguem ofertar o ensino via EaD.

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Custodiado estuda cusos de pós-graduação EaD dentro da penitenciária. Foto: Orlando Costa/Agência Tatu

Segundo a coordenadora pedagógica do sistema prisional alagoano, Thaís Bandeira, antes dos presos iniciarem algum curso EaD, o link ou a plataforma é analisado pelo setor de tecnologia para averiguar se é possível autorizar ou não. 

A segurança tem sempre que estar em primeiro lugar. Teve um caso de uma pessoa que estava estudando numa universidade, mas quando foi presa a gente não conseguiu manter os estudos dele na instituição, pois o link EaD deles era ligado à Microsoft, o que possibilitaria que ele acessasse o e-mail, então a gente não autoriza”, explica Thaís.

Com as limitações por medida de segurança, poucas instituições, a maioria de natureza privada, conseguem se adequar para ofertar os estudos para pessoas privadas de liberdade, o que faz com que haja uma redução nas opções de cursos disponíveis.

Coordenadora pedagógica do sistema prisional alagoano, Thaís Bandeira, fala sobre os desafios da educação superior dentro do cárcere.

Para a doutora em Sociologia, especialista em Criminologia e professora do curso de Direito na Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Elaine Pimentel, a questão do acesso a universidades públicas para presos é um desafio que deve ser superado via tecnologia, mas que também depende da vontade política.

“Penso que esse é um desafio tecnológico de encontrar ferramentas, porque devem existir. Se a iniciativa privada conseguiu, por que a universidade pública não consegue? Então, é realmente a busca por essa saída tecnológica que permita que acessem dentro do sistema prisional as respectivas plataformas, de ensino e aprendizagem, sem que tenham plena liberdade para navegar na internet. É uma questão tecnológica e de vontade política também, de articular algo dessa natureza”, relata Pimentel.

Importância do Enem PPL

Nos últimos quatro anos, o número de inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para adultos privados de liberdade e jovens sob medida socioeducativa que inclua privação de liberdade, conhecido como Enem PPL, mais do que dobrou no país, o que pode indicar um maior interesse e escolaridade da população carcerária.

Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a aplicação no Enem PPL é realizada em penitenciárias, cadeias públicas, centros de detenção provisória e instituições de medidas socioeducativas, em dias diferentes do Enem tradicional, e objetiva contribuir para elevar a escolaridade da população prisional brasileira.

Mesmo que não seja possível cursar uma universidade pública na modalidade EaD, caso um reeducando seja aprovado, o resultado do Enem PPL permite o acesso ao ensino superior em universidades privadas, por meio de programas como o ProUni e Fies, desde que sejam as instituições que se adequam às medidas de segurança.

De acordo com Thaís Bandeira, muitos presos realizam a prova do Enem quando observam que a pena está próxima de ser concluída, desta forma, caso aprovado, será possível estudar presencialmente em uma universidade pública, através do Sisu, ou mesmo em uma universidade particular. Outra esperança é de ser aprovado no Enem PPL e conseguir autorização judicial para frequentar as aulas.

“Tem alguns [presos] que passam na Ufal, por exemplo, efetivam a matrícula e como eles têm dois anos para iniciar [os estudos], se eles tiverem liberdade nesse período aí eles conseguem cursar, ou se mudarem para o regime semiaberto, pois o regime semiaberto termina funcionando quase como um regime aberto, aqui em Alagoas”, explica a coordenadora pedagógica do sistema prisional alagoano.

Desafios no acesso ao ensino superior

Mesmo com todos os obstáculos relacionados ao acesso ao ensino superior, principalmente nas universidades públicas, a maior dificuldade é ainda o desejo de querer estudar, segundo a professora da Ufal, Elaine Pimentel.

“Algumas pessoas nunca foram à escola, outras foram durante pouco tempo e depois abandonaram, por muitas razões, e outras frequentaram a escola, então a questão mesmo é tornar essa educação atrativa, interessante e tentar envolver, já que a educação não é uma obrigação proveniente da pena, então o apenado ou apenada pode estudar ou não”, afirma Pimentel.

Se isso não for trabalhado para que o apenado tenha o desejo de estudar, é possível até que se ofertem vagas que não sejam preenchidas. Então penso que o desafio maior é tornar a educação interessante, atrativa, não infantilizada, para essas pessoas privadas de liberdade.

Elaine Pimentel, professora da Ufal.
Mulher branca, com cabelos escuros cacheados, blusa listrada colorida, em uma mesa, atrás uma parede branca, como se estivesse falando.
Professora da Ufal e pesquisadora na área de Criminologia, Elaine Pimentel. Foto: Karina Dantas/ Agência Tatu

A constatação da professora Elaine Pimentel é confirmada pelo reeducando J.S. Ele conta que no início da graduação outros 20 presos estavam estudando junto com ele, em diferentes cursos. Com o passar do tempo, o número foi diminuindo e a formatura foi realizada apenas com ele, já que todos os outros desistiram de seguir com os estudos.

Ele confirma que seu maior objetivo, para não desistir dos estudos, é a certeza que vai deixar o sistema muito melhor que quando chegou. Ciente dos desafios que tem pela frente, mesmo escolhendo trilhar outro caminho, J.S chama a atenção ao ser taxativo e dizer que a educação já o transformou e que as pessoas deveriam entender que é possível sim ter uma outra oportunidade na vida. 

O fio que corta a vida em sociedade e aqui é muito fino, muito frágil e qualquer pessoa pode estar aqui. Qualquer indivíduo pode cometer um homicídio. Pode ser preso por tráfico. Pode vir para cá por roubo, pode ser pela sonegação de imposto. Pode ser por não pagar a pensão alimentícia. Então, é importante que quem está aqui tenha a chance de sair melhor”, finaliza J.S, que fez com que a sua história de superação inspire outros detentos a iniciar os estudos. 

PUBLICAÇÃO
28 de junho de 2024

EXPEDIENTE
Reportagem: Karina Dantas e Madysson Weslley
Revisão: Graziela França
Imagens: Orlando Costa

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