Vítimas de enchentes em 2010, alagoanos têm enfrentado episódios mais frequentes nos últimos anos

Em 10 anos, o nível superou os 7 metros em 2022 e 2023 no interior, o suficiente para afetar população ribeirinha; dados apontam maior frequência do problema

Enchentes em Alagoas
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As cenas de famílias desalojadas após chuvas fortes e enchentes se repetem em Alagoas. Em Santana do Mundaú, o Rio Mundaú, que tem um nível de água médio de 2,3 metros em um dos pontos de medição, superou os 7 metros na última sexta-feira (7), deixando pontes interditadas e tirando 350 pessoas das suas casas. A cidade está, inclusive, entre as 29 em situação de emergência reconhecidas pelo governo federal no Nordeste.

A Agência Tatu analisou a série histórica do nível do Rio Mundaú registrada pela estação da Agência Nacional das Águas (ANA) no município, que fica na Zona da Mata de Alagoas, há 100 km de Maceió. 

Rua inundada em Santana do Mundaú

Parte ribeirinha de Santana do Mundaú foi afetada com cheia no fim de semana (Foto: Jonas Cardoso)

Nos últimos 10 anos, o nível d’ água máximo sempre esteve abaixo de 6 metros, superando a marca somente em 2022 e em 2023. O volume de 7,3m, atingido na última sexta, foi suficiente para causar cheia na área ribeirinha do município, sendo possível perceber que o nível máximo médio aumenta gradativamente a cada ano.

Série histórica do maior nível do Rio Mundaú nos últimos 10 anos em Santana do Mundaú

Cheia atingiu população ribeirinha em julho de 2022 e de 2023

O maior nível, desde 2012, foi de 7.76m registrado pelo sistema de monitoramento em 2 de julho de 2022. Na ocasião, moradores testemunharam que, naquele momento, o nível foi maior, pois cobriu todas as réguas e equipamentos instalados pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e pela ANA, o que pode ter comprometido o envio de informações e as atualizações na plataforma do órgão.

Em 2023, a cheia fez com que 354 moradores deixassem suas casas, de acordo com a Defesa Civil Municipal. A água não entrou nas residências, mas a reportagem encontrou prédios comerciais que foram afetados.

Comerciantes de Santana do Mundaú limpam estabelecimentos atingidos pelo rio

Comerciantes limparam estabelecimentos afetados por cheia. (Foto: Thiago Aquino/Agência Tatu)

Um desses prédios é de uma agência de turismo, que já foi atingida e ficou danificada no ano passado, um prejuízo para a proprietária Kallyne Sabino, que realizou adaptações nos móveis planejados por já esperar outros episódios como aquele. Somente por isso conseguiu retirar todos os móveis com mais agilidade desta vez.

“Depois da enchente de 2010 a gente ficou naquela expectativa de que acontecesse a cada 10 anos, mas estamos vendo que provavelmente será todo ano. Assim que o nível do rio começou a subir, tiramos tudo por precaução. Voltaremos com todos os móveis só depois do período chuvoso, então, por enquanto só uma mesa com notebook”, explicou Kallyne.

Resistência

Questionada se pensa em deixar o local, a empreendedora enfatiza que o comércio depende dos clientes. “Gostaria de sair, mas o fluxo do comércio da cidade está na parte baixa. É uma situação que não depende de mim, mas das autoridades, porque se os prédios públicos, atendimentos bancários e outras instituições saíssem daqui, aí sim haveria uma mudança”, justifica.

Moradores retornam a area ribeirinha - Vítimas de enchentes em 2010, alagoanos têm enfrentado episódios mais frequentes nos últimos anos

Moradores voltam para casa após ficarem desalojados. (Foto: Thiago Aquino/Agência Tatu)

A reportagem da Agência Tatu também presenciou moradores retornando com móveis para suas casas, após ficarem desalojados. A família de Charlanne Ribeiro reside na Rua Tavares de Araújo, que chegou a ficar inundada por algumas horas. Esta foi a terceira vez que ela e o marido Denes Vitorino passaram pela aflição de retirar o máximo de pertences da casa.

Mesmo sem a água entrar na casa, a preocupação e a correria foram as mesmas. O casal não pensou duas vezes antes de retirar roupas e o que conseguia carregar com ajuda dos parentes e amigos. O caos é fruto do trauma da maior enchente, a de 2010, quando os dois recém-casados, na época, viram a casa parcialmente destruída. Após isso, o casal abriu um estúdio de musculação e nas últimas cheias a desocupação é uma luta contra o tempo e a velocidade da água.

Guarda roupa de cimento em Santana do Mundau - Vítimas de enchentes em 2010, alagoanos têm enfrentado episódios mais frequentes nos últimos anos

Convivência com cheias faz moradores construírem móveis de cimento. (Foto: Thiago Aquino/Agência Tatu)

Essa convivência com o medo durante o inverno virou rotina. Charlanne recorda os episódios enquanto desfaz as trouxas de roupas e as põe de volta no guarda-roupa de cimento. “Decidimos fazer assim justamente pelo receio de novas enchentes e, inclusive, a cama vamos fazer também com material resistente à água”, explica a mundauense.

Os filhos Duan, 11, e Enzo, 7, crescem com a construção de memórias do Mundaú como vilão, já que precisam sair do aconchego de casa todas as vezes que a água chega perto, apesar de vê-la pela porta do quintal todos os dias. “O Enzo ficou muito nervoso na sexta-feira e pediu que eu o levasse para onde eu fosse”, relatou.

Rio é visto da janela de casas

Rio Mundaú é a paisagem vista no quintal de casas. (Foto: Thiago Aquino/Agência Tatu)

Apesar de toda essa situação, Charlanne é incisiva perante a pergunta sobre deixar o local de forma definitiva. “Só penso nisso na hora da agonia, mas depois passa. Não me vejo morando em outro lugar”, afirma. 

Maior frequência de cheias

Os dados da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh) revelam que nos três dias que antecederam a cheia da sexta-feira (7) choveu 171,3mm na Zona da Mata de Alagoas, onde Santana do Mundaú está localizada, o equivalente a 84% do esperado para todo o mês de julho, já que a média mensal para a região é de 203,1mm.

O meteorologista e superintendente de Prevenção em Desastres Naturais da secretaria, Vinícius Pinho, lembra que essas chuvas, assim como as de 2022, foram previstas com dias de antecedência:  “Toda chuva que é muito discrepante em relação à média climatológica não pode ser considerada normal. Por isso, foram emitidos avisos e alertas hidro meteorológicos, alertando aos órgãos de Proteção e Defesa Civil da possível ocorrência de chuvas”.

Estação de monitoramento do Rio Mundaú

Após enchente de 2010, estação de monitoramento foi instalada em Santana do Mundaú. (Foto: Thiago Aquino/Agência Tatu)

Vinícius deixa claro que não tem como afirmar se esse cenário se repetirá todos os anos, mas que a partir da observação é possível perceber uma maior frequência. “Temos observado um aumento tanto na frequência quanto na intensidade de eventos extremos na região”, apontou.

Área de risco habitada

Em 18 de junho de 2010, a cidade foi devastada pela maior cheia já registrada em Santana do Mundaú, contabilizando 4.250 desabrigados e desalojados e uma pessoa arrastada pelas águas, até hoje o corpo não foi encontrado. A enxurrada destruiu casas, estabelecimentos comerciais, prédios públicos e igrejas. Não há dados precisos sobre volume de chuva e do nível do rio na época, porque a estação de monitoramento só foi instalada no local posteriormente.

Santana do Mundaú

Área ribeirinha de Santana do Mundaú segue habitada. (Foto: Thiago Aquino/Agência Tatu)

Em 2014, foram entregues 1.261 casas às vítimas, que foram isentas de pagamento dos imóveis do programa Minha Casa Minha Vida. O Conjunto Jussara está todo habitado na parte alta da cidade, há 4km do centro, assim como toda parte ribeirinha afetada em 2010 que foi reconstruída, onde prédios públicos como Prefeitura e Câmara Municipal funcionam. 

A reportagem tentou saber da Defesa Civil de Santana do Mundaú se existe um mapeamento da área de risco e se o Município pretende tomar alguma medida preventiva para evitar uma nova tragédia, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria.

Soluções

Uma das soluções apontadas é a revitalização das margens do rio, sem edificações, como explica o professor da Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), João Paulo Gomes de Vasconcelos Aragão, que é doutor em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Para ele, os problemas com as enchentes seriam resolvidos com a retirara da população ribeirinha, mas que o processo deve ser participativo, cauteloso e levar em consideração todo contexto socioambiental.

“Não adianta apenas tirar a população desta área porque pode se criar outros problemas. Pensar na solução vai demandar educação ambiental para conscientizar as pessoas, fiscalização para evitar construções às margens do rio, o monitoramento que já existe, o investimento em infraestrutura urbana de saneamento, regeneralização do espaço de forma sustentável e realocar essa população para uma área onde continue com acesso a tudo o que a cidade oferece”, pontua Aragão.

Autor da pesquisa e do livro “Margens de rios em cidades: Análise de dilemas ambientais a partir de recortes de paisagens”, João Paulo realizou recentemente uma palestra sobre o assunto à convite da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal). O docente alerta que essas medidas precisam ser adotadas ao considerar as constantes mudanças climáticas.

“De qualquer modo, a população será afetada, mas [as medidas] são por um motivo nobre, de segurança e sustentabilidade. Não podemos abrir mão, já que as mudanças ambientais vêm colocando de forma bem explícita a urgência de uma política urbana, que exige do poder público um planeamento como um todo de uma cidade. Estamos falando de atitudes que vão evitar, além de mortes, os prejuízos socioambientais e econômicos”, acrescentou.

Dados abertos

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